“Como a gente vai ser brasileiro?”, pergunta Silva nos primeiros segundos de seu novo álbum de estúdio, batizado exatamente de “Brasileiro” (slap). Ao longo dos 40 minutos seguintes (que se espalham em 13 faixas inéditas), o compositor traça uma trilha de respostas possíveis para essa pergunta. Uma questão fundamental em duas dimensões: por um lado, para um país que atravessa uma encruzilhada histórica, com horizontes nebulosos; por outro, para um artista que busca reconstruir sua identidade a partir da proximidade com sonoridades de sua terra. Como a gente vai ser brasileiro?
“Quando lancei meu primeiro EP (em 2011), eu tinha uma bagagem forte de música gringa”, conta o músico. “Segui esse caminho, mas aquele universo começou a não dar conta de todos os meus interesses”, completa. Essa consciência levou Silva a buscar um caminho mais pop em “Júpiter” (2015). Mas o que preparou o terreno para que o compositor e cantor chegasse à maturidade de “Brasileiro” foi o mergulho na obra de Marisa Monte para o álbum “Silva canta Marisa” (2016) – e não só por ter impulsionado a evolução como cantor que ele mostra agora. A forma como Marisa vem lidando, desde o início de sua carreira, com a tradição da música brasileira, sem abrir mão de se afirmar em seu tempo e de dialogar com o pop/popular, inspirou o “gringo” Silva a olhar com mais atenção para o chão de onde veio (“Sou pedaço desse chão”, canta ele agora em “Caju”).
Seu chão, do qual brota “Brasileiro”, traz os discos de João Gilberto ouvidos em casa desde criança – e toda a MPB clássica, exceção de música “do mundo” permitida em seu lar cristão evangélico. Mas traz também o axé cadenciado do início dos anos 1990, de Daniela Marcury, Banda Mel, Cheiro de Amor – familiar ao universo praieiro de seu Espírito Santo natal. E o pagode romântico de Só Pra Contrariar e Raça Negra. E Adriana Calcanhotto. E Marina Lima. E Marisa Monte. Em suma, a canção radiofônica daquele período que formou o músico desde a infância – Silva completa 30 anos em 2018.
“Brasileiro” carrega essas e outras referências com a elegância musical – de cuidado com as melodias e harmonias – que nos acostumamos a ver na obra de Silva desde seu primeiro trabalho. Mas não é um disco dos anos 1990, ou uma mera leitura emepebística, joãogilbertiana, desse universo – a despeito da ausência total de guitarras no disco. As canções – são nove em parceria com seu irmão Lucas Silva, uma com Ronaldo Bastos, outra com Arnaldo Antunes e uma última assinada por Dé Santos sozinho, além de dois temas instrumentais compostos apenas por Silva – conduzem o ouvinte pela mão com leveza e segurança, com a marca da personalidade reconhecível de Silva, agora renovada. Soam como Silva, como rádio (o dueto com Anitta em “Fica tudo bem” apenas deixa isso mais evidente), como praia, como política amorosa (e amor político), como samba & pagode, como Bahia – enfim, como música popular brasileira.
Em meio a isso tudo, faz sentido a revelação de que nos alicerces do disco está “O povo brasileiro”, de Darcy Ribeiro. A obra se tornou o livro de cabeceira não só de Silva, mas de seu irmão Lucas e de André Paste (responsável pela bela capa de “Brasileiro”) – trio que, em inúmeras e longas conversas, forjou a concepção do disco. Concepção que virou som pelas mãos de um time de músicos encabeçado por Silva (piano elétrico, piano acústico, sintetizador, programações, violão, baixo, violino e percussão) e que se completa com Edu Szajnbrum (percussão), Gabriel Ruy (bateria), Hugo Coutinho (percussão e bateria), André Paste (percussão), Hugo Maciel (baixo), Bruno Santos (trompete), Joabe Reis (trombone), Rafael Rocha (trombone) e Roger Rocha (saxofone).
“Brasileiro” abre com “Nada será mais como era antes” – que ecoa o “Nada será como antes” de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, não só no título como na afirmação de que o país atravessa um momento definidor. O axé dos anos 1990 se afirma em “A cor é rosa”, escolhida para ser o primeiro single, com versos que Lucas conta terem sido inspirados em Iansã, a “rainha do entardecer”. E se reafirma na preciosa “Guerra de amor” (“Guerra do bem, eu adoro uma guerra de amor/ Mas não é guerra se eu sou invasor/ O que eu queria é você me querendo também/ Mas se não quer, peraí, tudo bem”).
“Let me say” é canção de exílio, de quem se viu impulsionado a sair do Brasil – seu arranjo inclusive joga com essa ideia de um Brasil internacionalizado, com sugestões da atmosfera de Bebel Gilberto de “Tanto tempo”, ou das harmonias de Ivan Lins e do suingue de Marcos Valle. Ela é seguida do samba “Sapucaia” (que faz pensar em Paulinho da Viola sob o olhar de Marisa), primeira instrumental do disco – a outra é “Palmeira”, com um piano solo contemplativo e litorâneo.
Única do disco não composta por Silva só ou com parceiros, “Prova dos nove”, do estreante Dé Santos, materializa uma bossa-nova-pagode-romântico que diz a que veio desde os primeiros versos (“Quando você anunciou que estava indo embora, amor/ Foi tão difícil, tão difícil de eu compreender/ Que sob o seu olhar eu já não mais cabia/ Que não queria mais comigo envelhecer/ Então fitei o mundo como nunca antes”).
“Milhões de vozes” traz a reflexão de Arnaldo Antunes (serena como a melodia de Silva) sobre o estado de agressividade contemporâneo no debate público (“Tanta ignorância ansiando se mostrar”), de muita grita e pouca escuta. “Eu não me arrebento, deixo o mar arrebentar/ Todo movimento uma hora para”, conclui, sábio.
“Ela voa” pinta nos versos de Ronaldo Bastos o retrato de uma mulher livre que “tá na chuva pra se molhar/ e na vida pra se perder”. A presença de Bastos faz sentido no disco não só por escrever os versos de uma canção, na visão de Silva e Lucas, “com a cara do Clube da Esquina”, do qual fez parte. Além da já citada referência à sua “Nada será como antes”, o disco carrega ecos (voluntários ou não) de “Juventude/ Slow motion bossa nova”, clássico álbum dele e de Celso Fonseca de 2002.
Com voz, percussão e palmas como base, “Brasil, Brasil” encerra o disco com terna e ácida ironia. E, assim como a abertura, com uma pergunta: “Quem conhece o Brasil?”. E, novamente, não há resposta definitiva. Mas, se Silva não decifra – e nem quer decifrar – as esfinges que propõe, a investigação o leva a seu trabalho mais rico até aqui.