PS: Vai soar óbvio isso, mas não dá pra falar de John Lennon sem detalhar – pelo menos um pouco mais do que se deve – sobre os Beatles. Afinal, a personalidade de Lennon, tanto na banda como na carreira solo, mantém muitas das mesmas características.
Falar sobre o ícone John Lennon (ícone, John Lennon, pleonasmo, oi) não é tão fácil quanto se imagina. Não dá para classificar exatamente seu temperamento. Da mesma forma que sua voz soprava suavemente suas letras, como um anjo interior, também tinha o poder cortar ao meio, como um punhal afiado.
Lennon tinha, dentre muitas, uma característica especial: ele compunha suas canções em primeira pessoa. Não que ele gostasse de contar suas histórias, ele só se sentia no direito de dizer o que pensava. Era a forma mais conveniente pra ele atingir seu objetivo. Ele, definitivamente, não era fácil de decifrar. Ambíguo, complexo, autobiográfico: alguns dos termos que podemos usar pra defini-lo.
Características essas que se aplicam tanto em sua carreira solo quanto no começo de tudo: no nascimento dos Beatles, banda na qual teve um papel importantíssimo, já que foi um dos fundadores, além de dar sua opinião sem devaneios. Sua forma de produzir era um tanto caótica, organização não era o seu forte, mas ele realmente sabia o que e como queria. Os engenheiros de som que tinham que dar seus pulos, diga-se de passagem.
Nascido em 9 de outubro de 1940, John Lennon nasceu em Liverpool, durante a Segunda Guerra Mundial. Seu pai, Alfred Lennon, era mercador marítimo e estava sempre fora de casa. Numa dessas ausências, sua mulher, Julia, engravidou de um soldado galês. Depois disso, foi morar com outro homem e o pequeno John passou a viver com sua tia Mimi. Só depois de crescido que passou a ter contato com sua mãe. Julia era muito musical, boêmia, de bem com a vida e sempre incentivou o filho a aprender música.
O relacionamento deles era incrível. Julia o ensinou a tocar banjo e deu a ele sua primeira guitarra de presente. Em 15 de julho de 1958, ela foi atropelada por um policial bêbado. Foi com as noções de música que sua mãe deu que Lennon montou a banda que, apesar de todas as mudanças que viria a sofrer com sua formação inicial, incluindo integrantes e até o nome, mudaria o rumo da história da música pop mundial.
Em 1956, aos 16 anos de idade, John Lennon criou o The Quarrymen, uma banda de skiffle – estilo musical que misturava folk, jazz e blues – junto com seu companheiro de escola, Peter Horton. Neste mesmo ano, após fazer um show na quermesse da igreja anglicana de St Peter, Lennon foi apresentado ao cantor e guitarrista Paul McCartney que, nas palavras dele, cantava muito bem e tinha domínio do instrumento. Ali nascia uma das maiores parcerias de compositores da história da música. O resto é história.
Apesar da imagem austera de liderança que automaticamente transmitia, ele não tinha como objetivo (e nem queria) ser um herói da geração. Mas não nomenclatura-lo como um mártir, provavelmente, seria uma estupidez. Afinal, esse interesse todo dele nas causas políticas, na defesa de seus ideais, ansiando pela paz e por um mundo igualitário era realmente verdadeiro? Não importa. O ponto nesta história toda é que todos ficavam tocados pelo que ele pregava. Era mais fácil de acreditar, sabe?
Suas composições, em sua maioria, eram movidas pela dor da perda e rejeição. Por não ter sido criado pelo pai e pela mãe, era inevitável pra ele falar de amor e não citar, logo em seguida, a propensão ao abandono, enfim, à dor de maneira geral. Muitos músicos podem ser considerados autobiográficos, mas Lennon era extremamente pessoal. Tanto quanto ou até mais do que muitos por aí. Só escutar seu primeiro disco solo, Plastic Ono Band (1970) e tirar a prova por si só. Um disco para ser ouvido seriamente, não apenas por diversão. Trata-se de uma experiência muito pessoal e profunda, justamente pra tentar entender pelo menos um pouco as situações contadas nele.
Não bastava ter fundado os Beatles, Lennon costumava tomar a frente de tudo. Sempre tomava frente das entrevistas coletivas, fazia piadas e só palavra a palavra aos outros integrantes na hora certa. Seu atrevimento era uma de suas marcas registradas. Apesar de ser desorganizado em sua essência, ele tinha a moral lá dentro. Respeitado pelos colegas de banda, ele era o único que dizia se a canção valia ou não a pena ser gravada. E também ajudava os outros na produção e sempre dava sua opinião sobre tudo. Deu dicas de composição a Harrison em sua canção, Taxman, do álbum Revolver. Mas isso apenas nos primeiros anos.
Acontece que Lennon foi perdendo o interesse em ser o “frontman”, apesar de ninguém nos Beatles ser nomenclaturado assim, com o passar dos anos. Em 1966, passou a usar LSD e maconha além da medida. Paul o repreendeu e ele respondeu com “I’m Only Sleeping”, outra grande faixa do Revolver. Depois que o empresário Brian Epstein morreu de overdose de comprimidos para insônia, em 1967, e McCartney foi ficando mais “responsável” pela banda, além da idéia do Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band ter saído da cabeça dele, Lennon foi, aos poucos, se afastando dos Beatles.
Casou-se com Cynthia Powell, quando a engravidou, em 1962, e deram a luz a Julian Lennon. Só que ele não era feliz. Além do fato de ter que ficar “escondida”, para não atrapalhar os planos de marketing de Epstein, que queria passar uma imagem dos Beatles solteiros. Como se o casamento fosse impedi-lo de se deitar com as groupies. Cynthia se fez de sofrida e não perdia a oportunidade de pintá-lo como um “canalha” aos quatro ventos. Por que ela ainda usa o nome dele, mesmo depois de tantos relacionamentos? John só foi se separar dela oficialmente em 1968, quando já estava vivendo assumidamente com a mulher que roubou seu coração e a tão odiada (sem motivos) pelos fãs dos Beatles: Yoko Ono.
Com a chegada da artista plástica japonesa, o lado canalha de John Lennon foi embora. Claro que era conveniente para muitos chamá-lo assim, ainda que ele tivesse sido. Mas foi Yoko Ono que o converteu, digamos assim, para uma vida mais familiar e sentimental. Foi quando o amor realmente começou a fazer sentido na vida dele. E claro que isso viria a atrapalhar a convivência dos demais beatles. Viria a atrapalhar? Com certeza. Logo, seria mais fácil para os fãs colocarem a culpa nela do fim dos Beatles, que viria ocorrer em 1970. Yoko tem sua parcela de culpa, mas outros fatores colaboraram para o fim da banda: morte do Brian Epstein, os pitacos de Paul McCartney nos negócios, o clima pesado no estúdio. Enfim, todos estavam, naturalmente, mais pra lá do que pra cá.
Lennon, para conseguir seguir em frente na carreira, precisava lavar a sua alma. Colocar tudo que o consumia pra fora, de uma vez por todas. E ele conseguiu isso com o lançamento de seu primeiro álbum solo, Plastic Ono Band, lançado em dezembro de 1970. Produzido por Phil Spector, contou com Ringo na bateria, Klaus Voorman no baixo, Yoko nos efeitos especiais nos vocais e ele próprio com as guitarras e o piano, além de todas as composições serem dele.
Lennon e Yoko fizeram terapia do grito primal, sob a orientação de Arthur Janov em Los Angeles durante quatro meses. Lá, ele foi forçado a enfrentar de frente seus traumas de infância – como a morte da mãe, o abandono do pai, o isolamento, etc. E a forma de colocar isso pra fora era, literalmente, o grito. Remember, uma das faixas mais brilhantes do álbum, é inquietante. Assim como uma criança perguntando compulsivamente as coisas pra um adulto. Sua estrutura é tão simples e ainda assim a melodia soa imponente. Em Mother, ele confronta o abandono dos pais. Em Working Class Hero, ele faz uma crítica sócio política, descrevendo as chances escassas de ser alguém neste mundo. Resumindo: uma crítica ao capitalismo e a opressão do ser humano desde o nascimento.
Em God, uma das faixas derradeiras do disco, Lennon explica que as pessoas buscam na religião o consolo para o sofrimento. Na letra, ele nega veementemente na crença de mitos, símbolos, ícones políticos e até mesmo religiosos. Ele acredita apenas nele mesmo e em Yoko. No amor que os une. Ficando claro que ele nunca foi contra a fé de ninguém, apenas queria tratar do assunto à sua maneira. “O sonho acabou”, dizia o verso final . E a alma dele estava lavada. Agora ele podia seguir em frente.
O álbum seguinte, Imagine, lançado a setembro de 1971, é mais tranquilo que o anterior, porém se mantém no lance da autoanálise. A faixa título trata-se de uma utopia de Lennon, onde ele imaginava um mundo sem possessões, sem países, onde ele ansiava pela paz e nada mais. Jealous Guy já é mais pessoal e mais próxima da realidade, já que ele perde a compostura admitindo o ciúme doentio da amada Yoko. Em How Do You Sleep?, ele alfineta Paul McCartney “a única coisa que você fez foi Yesterday”. Em How?, ele relembra as sessões de terapia primal que fez em Los Angeles no ano anterior, onde ele fala sobre uma crise existencial.
Sometime in New York City, lançado em junho de 1972, é o álbum mais político de Lennon. Foi sua forma de protestar contra o governo de Richard Nixon. Woman is the nigger of the world, John Sinclair, Sunday Bloody Sunday e Born in a Prison são alguns sucessos do álbum. Lançado em novembro de 1973, Lennon lança Mind Games, o álbum que marcou o início da crise de seu casamento com Yoko. A sonoridade lembra muito o Plastic e o Imagine. Talvez por isso seja tão rico. Destaque pra faixa título. Depois de ficar 5 anos em casa cozinhando e cuidando do filho, Lennon volta com seu último disco de estúdio, Double Fantasy, lançado em novembro de 1980. Woman e (Just like) Starting Over são duas das faixas mais inspiradas e belas deste disco.
Lennon naturalmente transmitia essa imagem de líder ativista político, defendendo a igualdade e a paz. Ele realmente lutava em prol dessas causas humanitárias, apesar deste não ser o seu maior interesse. Esse lance de igualdade, esses ideais revolucionários partiam da Yoko, mas ele se sentiu no direito de tomar a frente deles junto com ela, porque afinal isso tinha a ver com a situação dela: o preconceito racial, a intolerância, a mentalidade vazia das pessoas, etc. O casal se engajou em movimentos pacifistas, como o protesto “Bed In”, onde eles se hospedaram num hotel em Amsterdã, por uma semana, de pijamas, sob o slogan: “façam amor, não guerra”.
Eles cogitaram fazer um Bed In nos Estados Unidos, mas não aconteceu por motivos óbvios. Devido a sua ideologia, ele foi perseguido inúmeras vezes por Richard Nixon, que tentava se reeleger e fazia de tudo pra manter Lennon calado. Quando ele planejou sabotar a convenção do Partido Republicano, a coisa fedeu de vez: teve que voltar pra casa. Depois da polêmica do caso Watergate, Nixon foi obrigado a renunciar o cargo e então Lennon finalmente recebeu seu green card. Nesta mesma época, nascia Sean Ono Lennon, seu segundo filho. Daí ele se deu conta do que significava ser pai e estava disposto, a todo custo, a reparar o erro que cometeu com Julian, filho do fruto do casamento com Cynthia.
Tudo ia muito bem, mas em 1973 o relacionamento de Lennon e Yoko entrou em crise. A pedido de Yoko, John resolveu passar um “fim de semana” longe de casa, para vivenciar novamente a vida de solteiro. Foi uma espécie de “passe livre”, digamos assim. Intitulado “The Lost Weekend”, Lennon foi pra Califórnia acompanhado de sua jovem secretária May Pang. Claro, tudo programado por Yoko. Ele curtiu as festas mais badaladas na companhia de celebridades como Jack Nicholson, Elizabeth Taylor, David Bowie, Elton John, Cher e etc.
Essa atmosfera liberal foi essencial para o conceito do álbum onde ele voltaria às suas origens: Rock n’ Roll, com clássicos que o inspiraram, como Peggy Sue de Buddy Holly e You Can’t Catch Me de Chuck Berry. Neste período, Lennon produziu para Ringo Starr e Harry Nilson e gravou com Bowie e Elton John, além de trabalhar nos discos “Mind Games” e “Wall and Bridges”. Depois desse final de semana perdido, já era de se esperar que ele voltasse ainda mais apaixonado para os braços de Yoko.
No dia 8 de dezembro de 1980, o sonho realmente acabaria. De uma vez por todas. John Lennon foi abordado, naquela manhã, por um fã que pediu um autógrafo na sua cópia do Double Fantasy. Infelizmente, aquele seria seu último autógrafo. Naquele mesmo dia, de noite, o mesmo fã, Mark Chapman, doente mental, atirou em Lennon cinco vezes: quatro tiros nas costas e um no ombro. Cambaleante, ele disse: “fui baleado”. Um policial perguntou como ele se sentia. Suas últimas palavras foram: “sinto dor”. Às onze e cinco da noite, foi declarado morto. O assassino assumiu o crime friamente e segurava em suas mãos uma cópia do livro “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J.D Salinger.
O sonho realmente tinha acabado. O mundo sentiu a perda. Numa entrevista de TV, no programa do Larry King, Chapman afirmou que Lennon não seguia os ideais que cantava e que refletiu muito antes de cometer o crime. “Rezei para não matá-lo, mas sabia em meu íntimo que provavelmente faria aquilo. Só uma coisa: se sair da prisão, onde se encontra até hoje, não chega na padaria da esquina.
O que não acabou e nem nunca vai acabar é o respeito e admiração por John Lennon. Um artista verdadeiro, que lutou por seus ideais e não teve papas na língua pra dar sua opinião sobre a guerra, a hipocrisia, a opressão do ser humano. Isso é pintá-lo como um santo? Não. Até porque ele nunca foi um. Fez muita burrada, falou coisas impensadas, machucou corações por aí. E daí? Isso é característica especial dele? Para ele, a realidade era só um detalhe. A fantasia era muito melhor e mais gratificante. E seus devaneios não fizeram bem apenas pra cabeça dele, mas como pra uma geração de fãs e músicos. Para falar sobre uma coisa com propriedade é preciso passar por aquilo. E Lennon não apenas passou, mas vivenciou cada minuto: seja de felicidade ou de dor. É, acho que o sonho não acabou, afinal.
PS.: Para ouvir, relembrar ou conhecer mais a carreira de Lennon, vá ao youtube mais próximo de você e enjoy. Riqueza de obra, por favor.