Há 250 anos, nascia Antoine Favre (1767-1828), o relojoeiro suíço a quem é atribuída a invenção da caixinha de música, o pequeno instrumento que, há séculos, vem encantando crianças e adultos. Além de embalos infantis, sua delicadeza inspirou artistas tão distintos como o mestre alemão Karlheinz Stockhausen, a fada islandesa Bjork e o subversivo inglês Richard D. James (Aphex Twin). Seu formato tocou também a imaginação de Vanessa da Mata, que compôs uma música inédita e batizou seu novo espetáculo com esse nome. Gravado ao vivo na Casa Natura Musical, em São Paulo, o DVD (e CD) “Caixinha de música” traz a cantora – que está completando 15 anos de carreira – girando, renovada, em torno da própria obra, ao mesmo tempo em que inverte as engrenagens da indústria musical, registrando primeiro um show para depois avançar em turnê com ele na estrada.
“Caixinha de música é sobre cantar de outra forma, sobre me sentir um instrumento reverberando. É como se eu fosse a própria caixinha, com todas minhas ressonâncias poetizando um cotidiano. É um encantamento estimulante e feliz de um novo trabalho, que tem, ao mesmo tempo, candura e peso, tem formato de comemoração em grandes dimensões, mas é íntimo como se fosse em minha casa”, diz ela.
A abertura simboliza bem esse esquema novo. Em um cenário de cativante simplicidade, cercada de espelhos, como se estivesse dentro da criação de Favre, Vanessa começa o show, sozinha, interpretando “Valsa do sorrir”, enquanto toca um reluzente objeto metálico não identificado, de sonoridade parecida com a de um xilofone. “É um instrumento que comprei numa feira em Barcelona, na Espanha, há alguns anos, de um senhor que o tinha inventado. Ele parece mesmo um xilofone. E estava parado na minha casa. Comecei a brincar com ele nos ensaios e acabei resolvendo usar no show”, explica.
Logo em seguida, a banda – formada por Maurício Pacheco (guitarra, baixo, violão, programações eletrônicas, vocais e efeitos), Rodrigo Braga (teclado baixo synth e vocais) e Ruvício Santos (bateria, percussões, pads) – entra em ação. Também diretor musical do espetáculo, Maurício dispara um loop (efeito eletrônico), abrindo o caminho para “Gente feliz”, uma das quatro inéditas do show (“Se cuide para não ficar amargurado /Não seja o tipo que reclama/ E fica sentado”, diz a letra). Gravada originalmente com o BaianaSystem – explosiva revelação vinda das ruas de Salvador -, a música aparece sem a intervenção de Russo Passapusso, mas mantendo a levada kuduro criada em estúdio (o vídeo do encontro é bônus do DVD).
A sonoridade afro-eletrônica está presente também na calorosa releitura de “Boa reza”, uma pérola gravada junto com o grupo Almaz (com Seu Jorge e integrantes da Nação Zumbi) no álbum beneficente “Red Hot + Rio 2”, lançado em 2011. “Confesso que demorei a perceber o valor dessa música. Só gravei no show por insistência do Maurício”, admite Vanessa.
A mistura de sons orgânicos e digitais segue em outra dobradinha, de tons reggae, que junta “Vermelho”, do álbum “Sim”, de 2007 – renovada pela programação eletrônica de Marcus MPC, do coletivo carioca Digitaldubs – com “Natural mystic”, clássico de Bob Marley, do quarentão álbum “Exodus”. É um casamento natural para uma artista que, no começo da carreira, fez vocais de apoio para o renomado grupo jamaicano Black Uhuru (“O universo do reggae foi um dos primeiros a me acolher”, lembra com carinho).
A caixinha segue com corda total enquanto o show avança. Natural de Alto Garças, no Mato Grosso, Vanessa cresceu ouvindo sons rurais. Em uma homenagem a esse ambiente, ela recicla “Vá pro inferno com seu amor”, de uma autêntica dupla sertaneja, Milionário e José Rico, trocando a sanfona da canção original (de 1976) por uma guitarra distorcida. “Essa releitura, que eu já tinha na cabeça, exacerba o desgosto e a revolta expressos na letra de tintas românticas, típicas desse cancioneiro. É como se Billy Bragg (cantor britânico de folk rock) e sua guitarra interpretassem uma dupla sertaneja”, explica ela.
No meio do espetáculo, surge a canção que dá nome a ele. “Caixinha de música” foi gestada durante um retiro para ensaios no mítico sítio de Poço Fundo, de Tom Jobim, na Região Serrada do Rio, onde o maestro compôs clássicos como “Águas de março”. Ao vivo, ela é interpretada apenas na voz de Vanessa e no violão de Maurício. “É uma canção ao mesmo tempo tradicional e moderna. Resume bem o espírito desse show”, conta a cantora.
Mais à frente, outro cruzamento inesperado junta a esperançosa “Por onde ando tenho você” (do álbum “Segue o som”, de 2014), com a sombria “Love will tear us apart”, clássico do grupo britânico Joy Division (cujo vocalista, Ian Curtis, cometeu suicídio em 1980). “Enquanto estava experimentando um novo arranjo para ‘Por onde ando tenho você’, que ficou mais crua, baseada na levada de guitarra, surgiu essa citação de ‘Love will tear us apart’. Parece que a melodia de uma se estende na outra”, conta Vanessa.
Finalizado com os hits “Boa sorte/Good luck” e “Ai ai ai”, o show vai seguir uma rota que inverte a mão do marketing do show bizz: primeiro rumo às casas dos fãs, via DVD, e depois no sempre imprevisível caminho da estrada, na turnê que Vanessa e banda iniciam nos Estados Unidos, em setembro, e depois chega ao Brasil. “Preciso desse frescor, dessa empolgação de gravar um show e depois seguir na estrada com ele e não o contrário, gravar o show quando estivéssemos cansados dele após uma turnê. É um caminho desafiador”, resume ela, provando que pensa a música fora da própria caixinha.