Brasil, 1977. Uma nota no jornal expunha o tamanho da ambição artística do novo projeto de um dos artistas mais populares do país naquele período: “Será exigido traje a rigor para a estreia de ‘O Filho de José e Maria’ no [teatro] Carlos Gomes, conforme desejo de Odair José, que pretende contar com Mário Gomes e Nuno Leal Maia atuando como atores no espetáculo. Além de grande orquestra, Odair vai se apresentar acompanhado por um grupo de rock e contará com um corpo de baile para algumas passagens de sua ópera popular”.
Odair fazia sua maior revolução pessoal desde que estourou, no começo dos anos 1970. Em nova gravadora, a RCA, acabara de lançar o álbum O Filho de José e Maria, uma ópera-rock inspirada no livro “O Profeta”, do escritor líbano-americano Khalil Gibran. E, abraçado por Guilherme Araújo, empresário dos tropicalistas (Caetano Veloso, Gal Costa, Tom Zé e Gilberto Gil), caía na estrada com o novo show. Só alguém com esse perfil poderia abraçar um projeto tão iconoclasta.
Poucas vezes na história da música popular brasileira houve um álbum tão contestador dos costumes e tradições familiares – muito menos naqueles tempos de ditadura militar. As letras narram a história do tal filho de José e Maria – supostamente Jesus Cristo, embora esse nome nunca seja citado. Que nasceu de um relacionamento extraconjugal. Que viu os pais se divorciarem quando isso ainda era um tema tabu. Que usava drogas sem muita culpa. Que duvidava da existência de Deus. Que se via um bocado confuso com a própria sexualidade. Entre outras crises bem humanas.
Para dar conta de tanto assunto, O Filho de José e Maria seria um lançado em LP duplo, com 24 canções. Mas, por decisões internas da gravadora, acabou sendo condensado em um único disco. Algumas canções ficaram de fora. Outras nem chegaram a ser compostas.
O álbum tem sonoridade roqueira de altíssima qualidade, sustentada por uma banda base que incluía o genial soulman Hyldon (do antológico “Na Rua, na Chuva, na Fazenda”), o pianista Robson Jorge (parceiro de Lincoln Olivetti em arranjos clássicos dos anos 70 e 80), os violões de Jaime Alem (maestro de Maria Bethânia por décadas) e, amarrando tudo isso, a cozinha do grupo Azymuth (de “Linha do Horizonte”). A direção artística ficou nas mãos de Durval Ferreira, compositor e arranjador ligado à bossa nova.
Essa espetacular ficha técnica ajudou O Filho de José e Maria a se tornar um álbum cultuado a partir dos anos 2000, quando foi redescoberto e passou a valer pequenas fortunas nos sebos de vinil. Mas não foi só isso. Outro fator que colaborou muito na criação do mito em torno do disco foi seu completo fracasso de público. Mesmo com toda a divulgação espontânea que a igreja católica causou (chegando a ameaçar Odair de excomunhão), ninguém entendeu sua proposta na época do lançamento. De um lado, o público que seguia Odair não se interessou por tanta contravenção. Por outro, o público que toparia a contravenção tinha preconceito com um artista popular.
Parte do repertório excluído de O Filho de José e Maria – como as canções “Forma de Sentir” e “Agora Eu Sei” – viria à tona no álbum seguinte, Coisas Simples. Mas também havia material novo, como a polêmica “Agora Sou Livre (O Divórcio)”, sobre a oficialização da emenda constitucional de 28 de junho de 1977, regulamentada pela de dezembro do mesmo ano, que finalmente permitia o divórcio no Brasil. Lançado pela mesma RCA em 1978, trazia o mesmo Azymuth na banda base e Durval Ferreira na direção artística. Entre os músicos convidados, estava o guitarrista Sérgio Dias Baptista, dos Mutantes.