Trabalhos que correlacionam o pensamento crítico à busca permanente por inovação em temas, técnicas e formas de abordar a arte constituem a tônica da quarta edição do MIRADA} Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, evento bienal realizado pelo Sesc que acontece de 8 a 18 de setembro de 2016 em Santos e mais cinco cidades do litoral paulista (Praia Grande, Guarujá, Bertioga, Cubatão e São Vicente).
Essa nova edição do Mirada tem em sua programação 43 espetáculos originários de 10 países da América Latina, Portugal e Espanha. Ou seja, 12 nacionalidades representadas por meio de peças, performances, intervenções urbanas e uma instalação. Trata-se de um panorama que potencializa a capacidade de o teatro e a dança reagir diante das singularidades histórica, social, política e econômica, evidenciando a força da arte politicamente engajada sem perder de vista a ambição poética e a pluralidade estética.
As quatro edições do festival tiveram curadoria do conselho diretivo do Festival composto pelo diretor do Departamento Regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda; pela pesquisadora e educadora Isabel Ortega, brasileira radicada na Espanha; pelo diretor do Teatro Mayor de Bogotá, Ramiro Osório; e pelo diretor artístico do Festival Ibero-Americano de Teatro de Cádiz, Pepe Bablé.
Para Danilo Santos de Miranda “chegamos à quarta edição do Festival com representantes de 12 países, tendo a Espanha como país homenageado, o que permite reafirmar o caráter de integração entre os povos e culturas desse extenso território afetivo, como objetivo central da proposta. Além disso, mantém-se o lugar privilegiado para trocas de saberes e diálogos multilaterais, notadamente com a incorporação de demandas supranacionais nas pautas discutidas em comum”.
Prestigiada no circuito internacional devido à consistência de sua produção contemporânea, a Espanha é o país homenageado em 2016 e traz oito montagens, sendo a maior parte de espetáculos inéditos no Brasil. A produção brasileira vem representada por 15 obras convidadas, provenientes de diferentes regiões do país. Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México, Peru, Portugal e Uruguai trazem trabalhos significativos da cena contemporânea.
O público é estimulado a uma viagem de 11 dias por uma programação que contempla assuntos urgentes de nossa época, como família, gênero, racismo, identidade, cidadania, espaço público, ditadura, justiça, terrorismo e refugiados. Essa variedade de temas vai atingir espectadores adultos e infantojuvenis durante a temporada que ocupa, para além dos espaços do Sesc Santos, outros edifícios históricos de relevância cultural e espaços não convencionais da cidade, como a sala Princesa Isabel, no Palácio José Bonifácio, a Fortaleza da Barra – fortificação construída no Guarujá em 1584 – e as catraias do bairro do Paquetá, na zona portuária de Santos.
A Espanha presenteia o Mirada com montagens significativas. De Madri, a catalã Angélica Liddell traz ¿Qué Haré yo con esta Espada?, cuja estreia mundial recente ocorreu em julho no Festival de Avignon, na França. Notabilizada pelo radicalismo no campo da performance, a artista contrapõe o racionalismo de atos canibais ou terroristas ao sagrado. Ainda de Madri, o argentino Rodrigo García, do coletivo La Carnicería Teatro, critica o triunfo do consumismo nas sociedades, em 4. De Barcelona, os diretores Roger Bernat e Yan Duyvendak levam o príncipe shakespeariano ao banco dos réus em Please Continue, Hamlet. A experiência delega ao espectador o papel de protagonista e converte a sessão em audiência de tribunal. Na intervenção urbana Fugit, a Compañía Kamchàtka, da Catalunha, propõe um percurso itinerante por ruínas, terrenos abertos e ambientes fechados para questionar a situação dos refugiados pelo mundo.
A noção de repertório é outro eixo do Festival. Vencedora do Leão de Prata na Bienal de Veneza de 2015, pelo caráter inovador de suas montagens, a também espanhola Agrupación Señor Serrano comparece com duas:Birdie, que discute o fenômeno da miragem, e Brickman Brando Bubble Boom, uma reflexão a partir da especulação imobiliária no país e disseminada a outras artérias do capitalismo global. Andante mostra a pesquisa estética na trajetória da companhia Markeliñe, fundada em 1987 em Bilbao, País Basco, e Libertino, de Marcos Vargas & Chloé Brûlé, espetáculo de flamenco sintetizado em música e dança de raízes ciganas da Andaluzia, acompanhado por palmas, sapateado e violão.
Portugal comparece com três trabalhos. A dupla Ana Borralho e João Galante apresenta duas de suas obras: Untitled, still life, uma exposição das artificialidades ou ilusões de como as imagens alavancam histórias através do tempo, e World of interiors, em que o espectador é convidado a atentar à escuta e seus múltiplos sentidos. Zululuzu, do Teatro Praga, relê a historiografia de Fernando Pessoa e faz uma homenagem ao escritor e à África do Sul.
Mesclando dimensões nativas e urgentes, a Trilogía Boliviana, do coletivo Kiknteatr e do diretor e dramaturgo Diego Aramburo, delineia três peças independentes com o intento de transmitir uma percepção crua, atual e menos romântica da Bolívia, onde cerca de 70% da população é de origem indígena e com a qual o Brasil compõe o maior trecho de fronteira.
Ainda para circunscrever a Cordilheira dos Andes na América do Sul, figuram mais dois países cujas teatralidades são pouco conhecidas no Brasil: o Equador (Barrio Caleidoscopio, do Teatro de la Vuelta) e o Peru (Cruzar la Calle, de Daniel Amaru Silva). Outra emblemática presença vem da região do Mar do Caribe, a ilha de Cuba, com Antigonón, un Contingente Épico, uma profunda reflexão sobre o país e sua gente na perspectiva do Teatro El Publico, que reúne artistas de diferentes gerações em seus 24 anos de estrada.
Presenças mais frequentes, Chile, Argentina e Uruguai enviam criadores de ponta. Entre eles, a cultuada Compañía Teatrocinema, de Santiago, com La Contadora de Películas, cuja narrativa ambientada no deserto de Atacama funde ator e imagem audiovisual. De Montevidéu, a Compañía de Artes Escénicas Contemporáneas Complot, das mais profícuas, representa La Ira de Narciso, texto e direção do franco-uruguaio Sergio Blanco, que maneja autoficção interpondo conteúdos vividos e inventados. E de Buenos Aires, a companhia Timbre 4, a mesma do fenômeno La Omisión de la Familia Coleman (2005), apresenta Dínamo, espetáculo no qual três mulheres compartilham um trailer perdido em alguma estrada qualquer, expondo como tanta solidão e estranhamento podem gerar novas energias à vida.
Do México vem Psico/Embutidos, Carnicería Escénica, da Compañía Titular de Teatro de la Universidad Veracruzana. O espetáculo vai ocupar a área de convivência da unidade Sesc Santos, funcionando não só no horário das sessões, mas também como uma instalação aberta à visitação do público: um esqueleto cenográfico de grandes dimensões que simula o funcionamento do aparelho digestivo humano em uma autêntica experiência sensorial. Do mesmo país vem Cuando todos Pensaban que habíamos Desaparecido – Gastronomiaescénica, do Vaca 35 Teatro en Grupo. O subtítulo indica o trabalho não convencional e inusitado do grupo ao colocar em cena a tradição mexicana de homenagem aos mortos, expressa nas casas enfeitadas e no preparo dos pratos favoritos daqueles que já não se encontram fisicamente entre eles.
Já a seleção de 15 espetáculos brasileiros envolve oito unidades federativas e inclui duas aguardadas estreias deste semestre: Leite Derramado, adaptação cênica do premiado romance homônimo de Chico Buarque, feita pelo diretor e dramaturgo Roberto Alvim, da Cia. Club Noir (SP), que propõe uma visão panorâmica sobre séculos da história do Brasil através do narrador-personagem de cem anos, ora arruinado, e A Comédia Latino-Americana, segunda parte do díptico idealizado e dirigido por Felipe Hirsch junto ao coletivo Ultralíricos (SP-RJ) – assim como A Tragédia Latino-Americana, o novo trabalho é estruturado por trechos de obras da literatura da região.
Dentre as demais peças ou coreografias do eclético recorte de linguagens e conteúdos nacionais, estão Blanche, transposição que o diretor Antunes Filho, mais de 60 anos de ofício, define como “uma viagem em fonemol” a partir do drama Um Bonde chamado Desejo, do norte-americano Tennessee Williams, em referência à língua inventada e improvisada emitida pelos atores do Centro de Pesquisa Teatral, o CPT Sesc, e Grupo de Teatro Macunaíma.
E coletivos longevos ou recém-consolidados no cenário brasileiro pela investigação continuada: Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis (RS), com a intervenção Viúvas – Performance sobre a Ausência; Coletivo Irmãos Guimarães (DF), com a peça Hamlet, Processo de Revelação; Grupo Clowns de Shakespeare em parceria com o diretor Gabriela Villela, com o espetáculo de rua Sua Incelência, Ricardo III; Grupo Cena 11 Cia. de Dança (SC), com Monotonia de Aproximação e Fuga para 7 Corpos; Aquela Cia. de Teatro (RJ), com Caranguejo Overdrive; e Grupo Magiluth (PE), com O Ano em que Sonhamos Perigosamente.
Seis performances permeiam a programação desse Mirada, com apresentações na Cadeia Velha de Santos e Área de Convivência do Sesc: ■Cadeia Velha (BRA), de Juliana França & Alejandro Ahmed, A Situação DA Brasileira (BRA), de Grasiele Sousa, F2M2M2F (BRA/POR), de Tales Frey, FLOU! (ESP/BRA), de Ieltxu Ortueta, Descrição de Imagem / Estudo de Paisagem (BRA), de Márcia Nemer-Jentzsch, e Não Alimente os Animais(BRA), de Jaqueline Vasconcellos.