O retrato é talvez o mais poderoso gênero da história das artes visuais, com uma presença que se estende desde pelo menos o século 270 a.C. até os dias de hoje. O fascínio que exerce sobre a imaginação humana é único: continua a ser um elo privilegiado entre a razão e o espírito mágico, que não abandona a humanidade. Isso porque o retrato tanto se entrega ao olhar do observador como o observa atentamente, o que pode ser ao mesmo tempo reconfortante e ameaçador.
As culturas ditas primitivas não deixam de ter razão quando instruem seus membros a negarem-se ao olho da câmera: não é só a aparência do fotografado que a máquina captura, mas também seu espírito, sua essência. O retrato é, assim, um constante exercício de psicologia social e individual.
O RETRATO DA POMPA
Os primeiros retratos autônomos (que não mais são parte da arquitetura) surgem no século 13 e ganham impulso com a invenção da portátil tela de pano como suporte (o mais antigo exemplo da pintura sobre tela é uma madona de 1410). Os retratos deste grupo são ditos “de aparato”. A imagem construída pelo artista deve ser impressionante, o retratado é mostrado como alguém especial, subtraído quase aos acidentes do efêmero. Daí serem de certo modo atemporais: não fosse pelas roupas (retratos de mulheres despidas sempre foram aceitáveis mas de homens nus, depois dos tempos clássicos, só na arte contemporânea), que ajudam a configurar e situar os que as envergam, os retratados quase estariam fora de um lugar e de uma época determinados.
São exemplares neste sentido os retratos assinados por Goya, Van Dyck ou Hals: os retratados estão sobre fundo neutro e se deixam ver em poses hieráticas, afirmativas, quer apareçam de corpo inteiro ou de meio corpo. São retratos de pessoas e também de alguma coisa, sobretudo do poder.
Os primeiros retratos foram os da realeza, do alto clero e da aristocracia, donde serem naturalmente “de aparato” (no Renascimento surgem os retratos das pessoas mais comuns ou, em todo caso, os burgueses). Como toda pintura de gênero, o que primeiro se retrata aqui é o próprio código a que a obra pertence – no caso, a própria pompa, a ideia da pompa; o retratado é meio para pintar-se a pompa em si mesma. O retratado existe porque a pompa existe.
O RECURSO À CENA
Os retratos deste grupo apresentam seus modelos junto a alguma coisa, fazendo alguma coisa, representando alguma coisa: compõem, com as outras pessoas ou coisas representadas, uma cena que lhes empresta ou sugere uma qualidade própria. De algum modo, todo retrato compõe uma cena, em particular os retratos de aparato; aqui, porém, a cena é mais explícita e ampla e a narrativa que propõe é mais extensa, se não mais complexa. Várias das obras deste grupo relacionam-se àquelas exibidas entre os retratos da pompa, enquanto outras, em número não menor, remetem-se ao grupo dos retratos modernos, de que poderiam fazer parte com igual propriedade.
Típicos do modo deste conjunto são os retratos por Toulouse-Lautrec e Manet.
É de 1310 a recomendação de Pietro d Abano de que o retrato deveria expressar a aparência e a psicologia, ou a alma, do retratado – algo mais viável nos retratos deste grupo e do próximo, do que naqueles de aparato. Daí não se deve concluir, porém, que a semelhança sempre tenha sido tudo, no retrato: antes da modernidade proposta pelo século 19, conforme o princípio da dissimulação o realismo deveria submeter-se aos interesses contextuais da representação, razão pela qual sobretudo nos retratos de pompa ou aparato os eventuais defeitos físicos dos modelos eram diminuídos ou ocultados. Na contemporaneidade, o corpo humano em seu realismo mais cru, em suas falhas e decadência, será mostrado sem disfarces.
EU MESMO
Atração narcisista pela própria imagem; tentativa de sair de si mesmo para enfim ver-se melhor, ver-se de outro modo; a simples comodidade de ser o modelo mais disponível; no início de sua história, esforço do artista para que o vissem como aqueles que ele próprio retratava, isto é, como um membro das classes altas, das profissões liberais (intelectuais) e não das manuais, que dependiam do esforço físico: tudo isso se encontra na origem e na história do auto-retrato.
Rembrandt, com a retratação insistente de si mesmo, não raro impiedosa, foi um equivalente dos poetas que repetidamente mergulham em si para vislumbrar pelo menos um pouco da natureza humana.
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