Martinho da Vila faz lançamento do álbum “Bandeira da Fé”

Em seu 48º álbum, o incansável Martinho da Vila nos brinda com juventude e leveza nas levadas e interpretações de suas canções, mescladas à sabedoria adquirida em oito décadas muito bem vividas entre o interior do estado (Duas Barras, sua cidade natal, e onde hoje tem um sítio), a Vila Isabel (o bairro e a escola que estão em seu sangue e no próprio nome) e a Barra da Tijuca (onde reside há mais de uma década). São três visões que se irmanam. A contemplativa do interiorano, a engajada do sambista negro que veio da pobreza e ganhou o país (e até o mundo) e a despretensiosa dos cariocas que adotaram a parte praieira da zona oeste. Em “Bandeira da Fé” (Sony Music), Martinho se desdobra em personagens que exaltam a mulher, o samba, o carnaval e a negritude, se preocupam com o país e outros que desistem e vão se exilar em algum recanto da própria cidade ou até mesmo em Portugal. Especialista em cunhar discos temáticos, sua ideia principal neste álbum foi reciclar temas presentes em sua vasta obra para comemorar seus 80 anos. Ele diz que este será seu último CD oficial, que aliás tem, mais uma vez, uma capa belíssima de Elifas Andreato. Mas é difícil de acreditar, pois ele sempre foi uma máquina de fazer bons discos.

Carnaval e crise no país

A ideia do álbum começou pelo samba “Bandeira da Fé”, dele com Zé Catimba, lançada sem maior repercussão por Luiz Carlos da Vila em 1983 e regravada por Agepê, quando este foi o primeiro sambista a superar a marca de 1 milhão de cópias vendidas, como seu LP “Mistura Brasileira”, em 84.  Martinho então a atualizou, trocou algumas palavras e inicialmente pensou em lançá-la de forma avulsa, mas em seguida lembrou de outras três que gostava e nunca havia gravado e daí partiu para o conceito do álbum. “Ficou como o disco dos 80 anos. Quis falar das coisas que eu falo sempre, registrá-las mais uma vez. Falar da Vila Isabel, de Duas Barras, do samba…”. E nesse meio tempo, se deu conta de que nunca tinha feito um samba-de-breque. “Fiz muitos sambas falados, mas neste gênero o cara breca mesmo a música, como se tivesse de parar para explicar algo que acabou de cantar. Então fiz um falando do próprio samba”.

Martinho se refere à faixa de abertura, “O Rei dos Carnavais”, em que cita não só Moreira da Silva, o grande sistematizador do samba-de-breque, como o saudoso amigo Zé Ketti, autor do antológico “A voz do morro” (“Eu sou o samba/ A voz do morro/ Sou eu mesmo sim, senhor”), lançado ao sucesso por Jorge Goulart em 1955, que ele cita ao final. Numa época em que o samba tradicional é cada vez mais raro nas rádios cariocas, ele reitera suas origens, seu legado e sua força: “Dizem que eu surgi na Bahia/ E sou carioca registrado/ Bem criado nas favelas, mas posso ter sido cria/ De qualquer um outro estado/ (FALADO: Ou mesmo em qualquer cidade que tinha uma senzala e sons de zuela. Dos batuques sou sequela). Note que “zuela” é uma palavra usada nos ritos do candomblé que significa o mesmo que “ponto”, ou seja, uma música para exaltar alguma de suas entidades.

Festiva e carnavalesca é também a faixa de encerramento, “Baixou na Avenida”, que canta em dueto com o filho, Tunico da Vila, e presta um tributo ao frevo e às tradições da folia pernambucana. “Esta ideia nasceu há três anos, quando a sua escola de samba homenageava o estado de Pernambuco e o político Miguel Arraes (‘Memórias do Pai Arraia – um sonho pernambucano, um legado brasileiro’). Mas tinha outros parceiros que gostavam da mensagem mais direta. Daí resolvi abandonar a minha ideia original e fazer uma outra música com eles. No duro, esta que fiz agora era pra ser um samba-enredo da Vila”, explica ele que acabou compondo uma mistura de frevo e samba abordando o mesmo tema, aproveitando para exaltar a cultura e o folclore pernambucanos – e sem rimas (!).

Neste frevo aparece o tema da esperança por dias melhores no país, mote que permeia de certa forma todo o álbum. Em “Não Digo Amém”, ele demonstra certa decepção. “É um desencanto com esse Brasil que a gente gosta, mas que no momento não está gostando muito dele, não”, lamenta o sambista, que por outro lado, é mais perseverante na faixa-título, “Bandeira da Fé”. Criado no contexto das “Diretas já”, este samba ressurge neste delicado momento, em que setores da sociedade chegam a minimizar a importância da liberdade de expressão: “Vamos levantar a bandeira da fé/ Não esmoreçam e fiquem de pé/ Pra mostrar que há força no amor/ Vamos nos unir que eu sei que dá jeito/ E provar que nós temos direito/ Pelo menos à compreensão/ Senão um dia/ Por qualquer pretexto/ Nos botam cabresto/ E nos dão ração”. Entretanto, ensina: “A gente tem que resistir, participar, mas sem perder a alegria”, algo que está muito claro nos últimos versos do samba.  Ao mesmo tempo, esta fase difícil atual têm feito muitos brasileiros se exilarem na Terrinha. Este é o mote do “Fado das Perguntas”. “Conheci algumas pessoas que vão pra Portugal, se ajeitam, para depois levar suas famílias. Então, imaginei um cara com saudade da mulher que deixou aqui, tipo: ‘está tudo tão bom aqui, só falta ela’”, diverte-se.

Negritude e Glória Maria

Uma das melhores faixas do álbum é “O Sonho Continua”, dele com a filha Juju Ferreirah e o rapper Rappin’ Hood, na qual ele convida este último para uma fusão de samba e rap. “Sempre vi o rap junto do samba, é tudo parente. Isso vem desde o ‘Deixa isso pra lá’, do Jair Rodrigues – aliás, até mesmo o samba-de-breque é também um parente bem próximo do rap. Há muito tempo o Rappin’ Hood fez esse rap com minha filha Juliana, mas eles não conseguiam terminar. Ele me perguntou se não queria dar uma olhada. Dei uma arrumada e como ele gostou muito, o convidei para cantar comigo”, explica. A letra aproveita para lembrar alguns baluartes do movimento negro brasileiro: “Falou guerreiro, sangue bom/ Com o coração, como o King dizia/ Eu digo que por aqui está faltando o Abdias/ Lélia Gonzales, Tereza Santos/ Antonio Pompeu e outros tantos/ Tudo gente boa/ Que não ficava parada à toa”.

Ainda na seara da negritude, “Zumbi dos Palmares, Zumbi”, é um samba feito a quatro mãos como o maestro Leonardo Bruno para o “Concerto negro” levado ao palco em 2000, que nunca chegou ao disco. Mais uma vez a figura mítica de Zumbi volta num samba do compositor. “Ele era fascinante por ser um resistente. Tento contar neste samba a história dele na letra – o que ele foi e o que ele fez. Era um cara desprovido de preconceitos, é um símbolo muito forte do Brasil que eu acredito”, conta o compositor, que trouxe também outra figura negra icônica para o seu álbum. Ninguém mais, ninguém menos que a jornalista Glória Maria, narrando alguns dos versos da canção “Ser Mulher”. Ele explica que decidiu usar um eu-lírico feminino: “Quis falar da historia da mulher, dos direitos que aos poucos estão chegando cada vez mais para ela. Inicialmente o mote seria ‘Deve ser bom ser mulher’, mas depois troquei. Resolvi me colocar no lugar do outro, no caso da própria mulher. Então criei: ‘É bom ser mulher’. Fala inclusive da adoção de crianças. Por isso também chamei a Glória para gravar comigo. Porque é uma mulher de sucesso, negra, que não tem filhos biológicos, mas adotou alguns. Ela está dentro da música”.

Recriações, confidências, saudades e uma nova musa

Além da faixa-título e desta última, que até então se mantinha inédita, o sambista resolveu repescar mais duas músicas antigas de seu repertório. “Depois Não Sei” ele próprio já havia registrado em seu álbum “Sentimentos” (1981), um samba de certa forma nostálgico que fala do ocaso da vida: “Fiquei adulto, já estou maduro/ Fui muito amado e muito amei/ Se Deus quiser eu vou/ Ficar bem velho/ A morte é certa/ Depois não sei”. Já “A Tal Brisa da Manhã”, sobre a luta diária da vida de um trabalhador, conta com o auxílio luxuoso da filha Mart’nália, e é bem desconhecida, tendo sido registrada apenas num CD independente de sua outra filha, Juju, em 2013. Trata-se de uma velha parceria com Luiz Carlos da Vila – seu saudoso amigo, cujo ingresso na Vila Isabel foi feito por intermédio de Martinho – que decidiu trazer à tona agora pelo teor autobiográfico e por nunca ter, ele próprio, gravado.

Há ainda dois sambas singelos. “Ó Que Saudade”, uma dor de cotovelo por uma mulher do interior, remetendo à sua cidade, Duas Barras, onde atualmente passa longos períodos, alternando com a sua atual residência, no bairro que é a sua nova menina dos olhos. “Minha Nova Namorada” é justamente uma declaração de amor à Barra da Tijuca. “Quando saí de Vila Isabel estranhei muito, mas o ser humano se adapta a tudo. Eu moro aqui já tem mais de dez anos, na verdade já gosto um pouco daqui. Aí resolvi falar desse sentimento”.

Produzido pelo próprio Martinho, “Bandeira da Fé” traz uma formação instrumental enxuta, apenas cinco músicos, incluindo três jovens já presentes no álbum “De bem com a vida” (2016), Gabriel de Aquino (violão), Alan Monteiro (Cavaco) e Gabriel Policarpo (percussão) e ainda Bernardo Aguiar (também na percussão) e João Rafael (baixo acústico). Os arranjos harmônicos e percussivos são de sua jovem equipe, sem medalhões. “Este trabalho é bom pra quem gosta de poesia e pra quem é mais ligado em música também”, avisa. O lançamento oficial será num show inusitado, diferente. Um concerto pop e clássico, no dia 3 de novembro, no Theatro Municipal do Rio. Que bom que temos por perto o talento de Martinho da Vila, um bom motivo para renovarmos a fé em nossa bandeira.

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