“Cheio de Gente” é o novo álbum da banda Memórias de um Caramujo

Nas costas de um caramujo, uma casa imensa. Assim falava o compositor Maurício Pereira sobre o primeiro CD do grupo que lança agora o seu segundo, Cheio de gente. Pois a casa ganhou mais um andar. Imenso também. Pelos arranjos e sonoridades muito trabalhadas, pelas interpretações maduras e, sobretudo, pela densidade e coerência do conjunto das canções que formam o disco. Paredes sólidas. Fundação profunda. Tão profundo como o convite que fazem ao ouvinte na canção que abre o álbum, Ávida Dúvida. Convite para seguir junto cantando em busca de algo que não se sabe. Dúvida do quê? De algo certamente vivo ou profundo como a vida? Não é a toa que essa palavra aparece duas vezes no título. Ou querem dizer que a vida é com certeza dúvida? Perguntas sem respostas. Impasse. Mudez. O esconderijo do caramujo. “Pra não ter que enfrentar”, como ouvimos em Caminho de volta. O impasse está no passado, que pesa sofrível sobre as costas. E no presente, cheio de obstáculos. Obstruído.

Claro, o futuro também está lá, e cheio de problemas engraçados, como na fantástica Nina. O pai que sonha acordado imaginando o futuro da filha. Para fazê-la dormir, é ele quem sonha. E o passado nem sempre é hostil, como na emocionante Rio. Aqui, novamente a dúvida. A dúvida de um homem na ponte, na travessia, entre a vida e a morte, entre o passado e o presente. A dúvida, o impasse, a indecisão. Assim como a personagem de Guimarães Rosa que não consegue assumir o lugar do pai na canoa em A terceira margem do rio. É a dúvida existencial. No presente, o sofrimento insistente do homem. Insistente como a frase rítmica do charango. Eis que o passado vem como uma torrente inundando os sentidos. Um refrão, uma enchente que leva o ouvinte. Que traz a tona tudo o que estava no fundo. Da mesma maneira como a madeleine tomou os sentidos do narrador em Em busca do Tempo perdido de Marcel Proust. A presentificação do passado. De repente o rio frio do presente está cheio de gente. De repente a música esquenta.

Pois o presente é mesmo de interdição, de fechamento. Os muros e a tribo calada em Tribo dos homens. A melodia inicial de Delírios de chuva, que se repete, sem saída, aprisionada como a letra. Preso aqui. Parado aqui. A marginal inundada. Tudo imobilizado. Assim como o eu-lírico de O sino. Sozinho na cela. O presente hostil e o incômodo do passado. O peso do passado pode atacar o sujeito na forma de livros e pó. Mas também na badalada, lá de longe, de um velho sino. O sujeito se enforca, mas o sino nunca se cala, pois a humanidade continua. Homem ou humanidade? Em Samdança, o enforcado é um homem? Ou é o ser humano? Qual seu crime hediondo? Qual o tamanho do homem? Qual o sentido da vida? Em Potosi. A origem da vida? A origem da civilização? As respostas podem vir pela contramão. “Meu corpo é a terra do chão”. O corpo é onde o chão pisa, como sugere Meu corpo é. A origem do universo está no final do disco. Cosmogonia é a última faixa. O início no fim. O que nos traz de volta para o começo, para a dúvida ávida. É triste e engraçado. O amor desajustado. É o desajuste o sentido da vida? É o que faz o mundo andar? Uma profusão de indagações. Mas todas elas ficam sempre sem resposta. Afinal, ela é a própria pergunta.

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